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Avaliação Sistêmica e Avaliação da Aprendizagem nos Ciclos de Formação Básica

3 - MUDANDO A AVALIAÇÃO PARA AVALIAR MUDANÇAS: FUNDAMENTOS E PERSPECTIVAS.

FUNDAMENTOS E PERSPECTIVAS DE UMA NOVA CONCEPÇÃO DE AVALIAÇÃO

Esse novo modo de considerar a questão da avaliação e o seu papel no processo educacional não é uma mudança que ocorre de maneira isolada. Ao contrário, para ser bem compreendido precisa ser visto como parte de um amplo processo de renovação de idéias, valores e práticas pelo qual vem passando a educação escolar. Esse processo respeita certas diretrizes e orientações muito bem fundamentadas em pesquisas recentes de vários campos do conhecimento.

O construtivismo é, hoje, amplamente reconhecido como a mais influente tendência e a mais rica fonte de inspiração para inovações na área educacional. A idéia de que o conhecimento é algo que resulta do esforço de elaboração pelo próprio aluno tornou-se um lugar comum entre os educadores, embora as implicações pedagógicas desse fato não tenham sido ainda suficientemente exploradas.

Mas, quais são esses princípios e diretrizes que vêm orientando o curso das transformações educacionais, tanto a nível de modelos e métodos de ensino, da organização do trabalho e dos tempos escolares, dos critérios de seleção e sequenciação de conteúdos, das pesquisas em ensino etc, quanto a nível das concepções e procedimentos de avaliação, tratados neste documento?

Em primeiro lugar, convém iniciar ressaltando que conhecer, na perspectiva do construtivismo, é sempre um ato de interpretação porque conhecer é sempre assimilar algo (aquilo que se quer conhecer) às nossas estruturas cognitivas, modificando-as, se necessário. Conhecer é, em outros termos, atribuir significados, uma vez que essas estruturas assimiladoras funcionam como sistemas de significações. Esse ponto de vista se choca frontalmente com posições do tipo empirista, que dão sustentação à pedagogia tradicional, para as quais o conhecimento seria cópia da realidade, nada acrescentando às nossas percepções. Ao contrário disso, sendo uma interpretação, o ato de conhecer não prescinde do esforço e não dispensa o envolvimento pessoal daquele que deseja compreender o mundo que o cerca.

Em segundo lugar, essas estruturas assimiladoras não estão prontas desde o início, não são preformadas ou tomadas como algo dado a priori. Do ponto de vista do construtivismo, especialmente do construtivismo piagetiano, o processo cognitivo é considerado como um processo de estruturação, ou seja, como o processo de construção de estruturas adequadas para interpretar a realidade, sendo os mecanismos de construção tão importantes quanto as próprias estruturas, do ponto de vista da sua teoria do conhecimento. Além disso, o equilíbrio de uma estrutura, ou seja, sua estabilidade, será decorrente de sua capacidade de incorporar novos elementos sem que isso interfira nas relações já estabelecidas, a ponto de comprometê-la.

Em terceiro lugar, o que permite ao sujeito a construção das suas estruturas mentais? A resposta a essa indagação está na interação do sujeito com o seu meio (entendido não apenas como meio físico, mas também sócio-histórico e cultural), do sujeito cognoscente com o objeto de conhecimento. Conhecer implica, portanto, atuar, agir e isto supõe um processo de modificação e mudanças internas produzidas pelo duplo jogo da assimilação e da acomodação.

Em quarto lugar, o problema central que interessa a todo educador é o da passagem de um estado a outro de conhecimento, considerado mais satisfatório. O que pode levar um aluno que interpreta certos fatos e fenômenos de um certo modo, num certo momento, passar a interpretá-lo de uma maneira às vezes inteiramente diferente? Através de que caminhos se dá essa transição? Isto significa que, mais do que apenas identificar etapas de construção, o problema da mudança conceitual requer o conhecimento e uma análise das razões, dos mecanismos e dos instrumentos envolvidos nestas mudanças

Em quinto lugar, essa mudança para um estado de conhecimento mais satisfatório não se dá por simples acréscimos ou adições de novos fatos e novas informações, como muitos costumam supor. Essa mudança se dá por reorganizações sucessivas e sequenciais, de tal modo que cada nível de conhecimento é resultado das possibilidades abertas pelas etapas precedentes, ao mesmo tempo em que prepara e condiciona a formação dos níveis de conhecimento que lhe sucedem. A equilibração majorante constitui o processo através do qual essas transições se realizam. Desse modo, o processo de construção do conhecimento é um processo de reestruturação no qual todo conhecimento novo é gerado a partir de outros já adquiridos, mas transcendendo-os, ultrapassando-os.

Em sexto lugar, a adoção dos princípios anteriormente enunciados implica na modificação de atitudes e idéias, por vezes preconceituosas, que têm sido formuladas a propósito do conhecimento prévio dos estudantes. Muito frequentemente, esse conhecimento é visto mais como um problema a ser removido (ainda que tal pretensão permaneça dissimulada sob métodos de ensino mais ou menos sofisticados e "modernos") do que como ponto de partida para novas aprendizagens. Numa perspectiva construtivista, eles se tornam condição necessária para progressos posteriores, na medida em que cada nível de formulação prepara e condiciona os progressos futuros. Além disso, é preciso entender o processo de mudança conceitual não como uma simples troca de conceitos, à maneira como se troca uma peça defeituosa, mas como uma autêntica ultrapassagem, com reestruturação do antigo saber, com todas as novidades e rupturas que essa ultrapassagem acarreta. É preciso entender também que essa ultrapassagem não obriga ao abandono das idéias antigas, às quais o sujeito pode recorrer em função do contexto e das circunstâncias de vida. Com isso, todos somos portadores de múltiplos olhares sobre o mundo, o que coloca na ordem do dia, enquanto estratégia pedagógica, a necessidade de levar os alunos à "tomada de consciência" das suas diversas idéias.

Em sétimo lugar, a análise do problema da mudança conceitual comporta duas abordagens complementares: uma, de natureza epistemológica e, outra, de natureza psicológica.

Do ponto de vista epistemológico, o conhecimento do real progride na direção de teorias cada vez mais abrangentes, com maior poder explicativo e capazes de responder, de modo cada vez mais adequado, a três tipos de questões básicas sobre um objeto: o que é isso? quais as suas características, as suas qualidades e atributos? (etapa descritiva); como funciona? como se comporta? quais as transformações possíveis e as leis que as regulam e quais as relações que estabelece com os demais objetos? (etapa das regularidades); finalmente, quais os "porquês" e as razões que explicam a maneira de ser e o comportamento observado (etapa explicativa ou de modelamento da realidade). Assim, nessa perspectiva, a questão central consiste em configurar as diferentes etapas de solução de um problema e mostrar o que cada uma delas acrescenta à compreensão do objeto.

Num enfoque psicológico, o progresso se reconhece pelo equilíbrio cada vez maior do sistema cognitivo, propiciado por três tipos de equilibração: a) a equilibração entre o esquema do sujeito e as características do objeto, pois, diante de um objeto que lhe parece novo o sujeito tende a assimilá-lo diretamente a partir dos seus esquemas de conhecimento já estabelecidos, mas insuficientes para dar conta das características peculiares do novo objeto; b) a equilibração entre os diversos esquemas que o sujeito utiliza para compreender o real, em função das lacunas, inconsistências ou contradições que possam surgir devido às mudanças (acomodações) resultantes da equilibração esquema-objeto; c) a equilibração esquema-estrutura, pois o sujeito, mais cedo ou mais tarde, tenderá a subordinar a suas idéias e conceitos a uma estrutura mais geral.

Em oitavo lugar, esses princípios e orientações já expostos conduzem a um modo específico de considerar a questão da aprendizagem e ao conceito de aprendizagem significativa. Aprender é atribuir significado e construímos significados integrando ou assimilando o que desejamos aprender aos esquemas (à estrutura cognitiva) que já possuímos. Por isso mesmo, o que o aluno aprende não coincide inteiramente com aquilo que o professor ensina: ambos têm percepções diferentes da atividade concreta e têm objetivos, intenções e motivações diferentes, e isso altera as atitudes e engajamentos numa atividade particular. A adoção do conceito de aprendizagem significativa implica numa mudança substancial no modo de considerar o processo de ensino-aprendizagem: de uma visão em que a aprendizagem do aluno depende diretamente e tão somente dos materiais, métodos e técnicas utilizados pelo professor, passa-se a uma outra em que ganha destaque o conhecimento prévio do aluno.

Como resultado, passa-se a reconhecer que o conhecimento novo que o professor quer ensinar será sempre profundamente influenciado por aquilo que o aluno já sabe ao iniciar seus estudos. Como nos lembra Coll , "a idéia essencial da tese construtiva que subjaz ao conceito de aprendizagem significativa é ... que a aprendizagem que o aluno leva a cabo não pode ser entendida unicamente a partir de uma análise externa e objetiva do que lhe ensinamos e de como lhe ensinamos, mas também que é necessário levar em conta, além disso, as interpretações subjetivas a que o próprio aluno constrói a este respeito".

Em nono lugar, é preciso ter presente que a educação escolar se dá num contexto específico e tem objetivos bem determinados. De uma parte, a expectativa social é que através da educação escolar todos possam ter preenchidas as condições básicas para o desenvolvimento do seu bem-estar, compreendendo isso desde o acesso aos bens culturais até à preparação para o trabalho e para o exercício das funções políticas requeridas pela sociedade. Por outro lado, não se pode esquecer que os significados que os alunos devem construir ao longo das atividades de aprendizagem não são significados quaisquer sobre conteúdos ou objetos quaisquer. Eles devem procurar construir significados tão convergentes quanto possível com aqueles socialmente atribuídos a conteúdos que, em sua maior parte, são criações culturais. Desse modo, a construção de significados pelo aluno é um processo que envolve interações complexas entre pelo menos três elementos: o próprio aluno, os conteúdos escolares e o professor. Nessa perspectiva, nas palavras de Coll , "a construção do conhecimento pelo aluno é claramente orientada a compartilhar significados e sentidos, enquanto o ensino é um conjunto de atividades sistemáticas mediante as quais professor e aluno chegam a compartilhar parcelas progressivamente mais amplas de significados com relação aos conteúdos do currículo escolar".

Face a essas considerações, convém concluir destacando que aprender significativamente quer dizer apropriar-se de instrumentos intelectuais que permitam a compreensão da realidade e mudanças no modo de agir sobre ela.

Em conclusão, as transformações que vêm ocorrendo na escola exigem de todos que nela atuam o esforço de superar velhos procedimentos, ajustando-os às novas concepções de ensinar, aprender e avaliar, sintonizadas com os resultados e perspectivas que as mais recentes pesquisas têm colocado ao alcance dos educadores.